04 junho, 2012

O solipsismo e o trote do Diabo

O solipsismo é a ideia de que todas as coisas são somente sensações na minha mente, a única coisa que existe de verdade. Se me permitem, vou chamar isso de hipótese. A hipótese do solipsismo se confunde totalmente com a hipótese de que as coisas existem de verdade, não podendo ser refutada. Um universo no qual o solipsismo fosse verdade se comporta da mesma maneira que um universo no qual os objetos exteriores à mente existem de verdade. Temos duas hipóteses que descrevem, de maneira muito diferente, o mundo. Como devemos proceder para dizer qual delas é verdadeira, se é que alguma é? Com perguntas como essa, percebemos como é difícil dizer o que é verdade. Não deve existir uma verdade absoluta no universo; o que há são modelos (ou hipóteses) que se aproximam do que o universo parece ser. O que ele é mesmo, se as bananas são reais ou imaginárias em essência, está além de qualquer experimentação. Desse modo, não dá pra dizer se o solipsismo é falso ou verdadeiro, não com as propriedades que gostaríamos que os conceitos "falso" e "verdadeiro" encerrassem. Vejo duas decisões racionais a serem tomadas. A primeira é rejeitar uma das hipóteses, e trabalhar com a mais palpável para produção de mais conhecimento; no caso, que os objetos são reais mesmo. A segunda é pensar que as duas são descrições equivalentes de uma mesma realidade. Nesse caso, não podemos descartar uma ou outra. Quem conhece matemática suficiente pode pensar em duas funções dos reais nos reais que coincidem em todos os pontos exceto num conjunto de medida nula. Apesar de serem duas funções diferentes, podemos dizer que elas são equivalentes (em um certo contexto de equivalência; um possível seria L^2). Apesar de uma função em L^2 não ter um valor definido em cada ponto (já que esse tem medida nula), podemos trabalhar com alguns aspectos invariantes para funções equivalentes; por exemplo, a integral, na reta, do seu quadrado. Na linguagem das classes de equivalência, a primeira decisão seria tomar um representante da classe; a segunda decisão seria trabalhar com toda a classe de equivalência. Retornando do tijolaço, apesar de eu citar duas decisões procedimentais, não recomendo uma nem outra, tanto para o problema metafísico como para o matemático. Somente é importante tê-las em mente, saber como poderíamos tratar problemas assim. Existe uma hipótese bem famosa, defendida por pessoas no mundo inteiro mas com muitas variações, que é a hipótese de que existe um ser (doravante chamado Deus)que agiu como descrito em Bíblia Sagrada (vários autores), que tem certas regras e espera que os humanos as sigam. Dependendo do grau em que eles a seguirem, indivíduos são salvos da danação eterna em uma cidade cercada por um muro quadrado que tem três portas em cada ponto cardeal. (Confira no sublivro Apocalipse, capítulo 21.) Há também uma questão menor que é a do nome dos salvos previamente escrita num certo livro da vida, o que nos sugere uma versão fatalista do mundo (a pessoa não consegue escolher suas ações a ponto de trocar seu status de salvo por não-salvo e vice-versa). Mas deixemos essa questão menor para outra ocasião ou para nunca, e trabalhemos com os aspectos gerais da hipótese: a possibilidade de salvação e vida eterna. Dependendo da corrente dessa crença geral (chamada cristianismo, ou hipótese cristã) e do nível de fé do indivíduo, há a defesa de que as evidências do universo corroboram firmemente a hipótese cristã. Assim, o cristianismo não seria somente uma crença, mas uma maneira de ver o mundo (hipótese, modelo) que seria totalmente coerente com os indícios da vida real. Mais ainda: seria a hipótese mais adequada, a melhor para explicar todos os fatos do mundo. Descreverei neste parágrafo uma segunda hipótese, um segundo modelo para o mundo. Ela defende que a Bíblia foi inspirada por Deus (o personagem principal da Bíblia), um ser bom e muito poderoso. Segundo essa hipótese, Deus guiou a história da humanidade, é capaz de se comunicar com os humanos, seja em orações íntimas ou através de milagres, e tem o sincero desejo de salvar a humanidade do pecado. Contudo, o real comandante do universo é outro ser, chamado Diabo, que também aparece na Bíblia. Deus o descreve (através de suas influências) como um enganador, um mentiroso, e isso em parte é verdade. O Diabo é um troll, um verdadeiro troll, que gosta acima de tudo de enganar as pessoas por puro prazer. Ele gosta de ver outros seres enganados - Deus, por exemplo. E o Diabo é o ser mais poderoso do universo, podendo lograr seus intentos facilmente (e ainda contando com a ingenuidade de Deus). Assim, o Diabo deixa Deus usar seus limitados poderes para que consiga convencer a si mesmo e aos humanos que o seguem de que há vida eterna e salvação depois da vida terrena. Contudo, o que Deus ignora na sua inocência é que é o Diabo quem realmente está no controle do mundo, e o Diabo não permitirá que Deus execute seu plano de salvar seus protegidos. Em resumo, segundo a hipótese, a Bíblia e as experiências terrenas são completamente coerentes com a hipótese cristã justamente porque o Diabo quer enganar as pessoas, e para isso as faz acreditar cada vez mais na salvação através de mais e mais evidências inquestionáveis da veracidade da Bíblia, para que sejam completamente enganadas quando suas vidas findarem. Essa hipótese pode ser considerada completamente herética e absurda em alguns círculos. O que ela faz aqui? Eu a concebi como uma descrição alternativa do mundo para quem vê indícios de Deus em toda parte. Os mesmíssimos indícios que essas pessoas encontram corroboram a teoria alternativa, que apresenta os mesmos "sintomas" ao mundo mas tem um caráter diferente relativo à salvação. Assim, no entendimento do significado de tais indícios, escolher pela superpotência de Deus e pela vida eterna e rejeitar o Diabo e seu grande trote universal é uma questão puramente de costume, boa vontade e otimismo.